quarta-feira, 26 de agosto de 2015

31 de março de 2015





Querida Carla Mesquita,


Eu não me incomodo com a demora de tua resposta. A espera trás palavras que reverberam na mente a todo instante, trás também sensações que muitos hoje desconhecem, como, por exemplo: a ansiedade, tornando a espera saborosa como um bom vinho. "Bebo" cartas e poesias como quem brinda à vida, assim como escrevera Boudelaire: "É preciso estar sempre embriagado... Com vinho, poesia ou virtude... Como achardes melhor". Como agora te digo, embriago-me de vinho e poesia, porque de virtude, minha querida, não me cabe, não mais. Virtudes... deixo-as para meus filhos. Estes sim têm o melhor de mim.
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Alegro-me em saber que tu estás bem. Será que podemos esperar tua presença física em terras europeias? Já fico imaginando os alemães em quantidades olhando-te passar. Eu aprecio muito as expressões abobalhadas dos homens quando tu passas. Recorda-te de uma de nossas noites em que fomos à Reeperbahn com nosso amigo de outra nacionalidade?
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Bom que citaste o famoso beijo-lésbico - acredito que a ignorância popular permite-me o acréscimo do hífen, já que entendo beijo simplesmente como ele o é: beijo! Não entendo o alarde desses hipócritas, são tantos os pecados descritos na bíblia. Há diversos tipos: engraçados, inacreditáveis, ridículos, moderados, graves e impossíveis (será que esqueci algum outro tipo? Leia Levítico 19:19). Sem contar com as descobertas sobre traduções errôneas de palavras no texto sagrado (sagrado? Como é louvável a ciência, não achas?). O que não me espanta é a revolta perante o amor. O que não me espanta é a aceitação da violência no nosso dia-a-dia. "Já o verme — este operário das ruínas — / Que o sangue podre das carnificinas / Come, e à vida em geral declara guerra...". Augusto dos Anjos, querida, retrata exatamente, ao meu ver, as pessoas contrárias ao amor, as pessoas contrárias à felicidade do outro, as pessoas contrárias ao outro. Aqui cabe uma pergunta (provocar-te é um exercício inerente ao meu querer): existe beleza na ignorância?
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Sabes, eu me lembro frequentemente de Dra. Stefania Buonamassa. Lembra-te de suas aulas à tarde, na disciplina de Produção de Texto? Naquelas aulas ela realizava verdadeiras leituras dramáticas, página por página, do clássico O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Lembras? Tamanha paixão que dedicara à leitura que parecia ter me enfeitiçado. Ela só pode ser uma feiticeira. A contramão da Medusa, ao invés de transformar seu observador em pedra, transformara pedra em flor (pareceu-te eufórico ou saudosista em demasia? É mais um daqueles nossos diálogos indizíveis a outrem). Eu acredito que nunca a agradeci por ter me apresentado ao Sr. Wilde. Fato é que mudara a minha vida... Não sei se soubeste, mas ela voltou à Itália. Poderíamos providenciar uma visita, já que, como disseste, achas que tu não te demorarás a vir à Europa. O que achas?
Caríssima amiga Carla Mesquita, eu preciso ir regar o meu jardim cultivado com mais de dois tipos de plantas.  E se deus perdoou minha amada Lispector, empresto-me suas palavras: "... Receba em Teus braços meu pecado de pensar..."

Ósculos intensos do lado direito da tua face são enviados por mim junto a esta carta.


André Bonfim


Hamburgo, neste 31 de março de 2015



quarta-feira, 25 de março de 2015

25 de março de 2015

Bom André Bonfim,

Realmente tu demoraste a escrever,porém, poder-te-ia julgar se eu não tivesse feito o mesmo. Peço-te encarecidamente que me desculpe pelo atraso da correspondência. Parafraseando a máxima popular: "antes tardar do que faltar". Não mensuras quão feliz me vejo diante das boas novas que me remeteste, espero que tenhas gozado de boa saúde, assim como vossas crianças, as quais, diga-se de passagem, parecem-me maravilhosas. Lembro-me com muito entusiasmo das nossas prosas à beira do Alster, dentre outras aventuras e desventuras por nós vivenciadas neste efêmero período em que aí estive. Quanto à política, meu caro amigo, concordo quando dizes que deveria estar presente em todas as nossas relações. Na democracia, quaisquer razões para se discutir política são relevantes, mobilizar-se, demonstrar ao sistema o vosso sentimento, protestar, tudo isso faz parte. Desde o ano retrasado eclodiu uma série de manifestações de rua que perduraram até o princípio do mês corrente. As primeiras manifestações se deram em proveniência do aumento das tarifas da condução, bem como o acontecimento da copa do mundo, enquanto hoje, a pauta que prevalece é o pedido de impeachment da Presidente. Por ora já foram esquecidas tais reivindicações, pois estas deram lugar a novela que nos é transmitida em horário nobre da rede Globo, na qual duas idosas se relacionam e trocam ósculos constantemente. Tais cenas estão sendo alvo de campanhas das criaturas conservadoras, que não estão indignadas com a violência que é praxe nas demais novelas, porém nesta, o amor vos incomoda. Meu querido Andre, eu passo muito bem, como outrora mencionei. Percebo-me mais magra, não tão macérrima como almejo, mas a balança me mostra como é imprescindível aliar atividades físicas a uma boa alimentação. Deixo-te agora, pois preciso dormir. Um grande amplexo daquela que tanto te estimas.


P.S.: Sinto que muito em breve estarei em Hamburg.


Carla Mesquita


Belo Horizonte, 25 de março de 2015





Texto: Carla Mesquita
Foto: http://www.colegioweb.com.br/wp-content/uploads/2014/05/cartas1.jpg

quarta-feira, 18 de março de 2015

16 de março de 2015




Tudo bom, querida Carla Mesquita?
Espero que tu estejas bem.
Como podes perceber, tenho tempo para te escrever. No último fim de semana ao passar em frente à Hamburg-Rathaus, eu sorri, na verdade gargalhei, ao lembrar de nossas conversas à beira do Alster - aquelas conversas permitidas somente a nós, do contrário correríamos riscos sociais. Por sorte mantemos a política sempre em dia. Lamentável as pessoas não observarem que a política está, ou deveria estar, presente em todas as relações humanas. Bom, assim eu vejo.

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Por aqui está tudo bem. As crianças crescendo, cada dia que passa mais independentes - isso é bom porque o trabalho aqui em casa de certa forma diminui - como sabes, aqui não temos trabalhadoras domésticas como as do Brasil: que ganham pouco e ficam o dia inteiro à disposição dos donos de/da casa.

Dia 28 de julho de 2015 completarei 4 anos morando na Alemanha (sensação psicológica de 10 anos) e mesmo assim "Canção do exílio" de Gonçalves Dias ainda não me cabe. Não obstante, não deixo de acompanhar os acontecimentos por aí. Houve essa 'manifestação' no dia 15 de março... Vejo vários discursos inflamados sobre política com um misto de sensações (boas, preocupantes e ruins, mas que se desdobram em certas perspectivas relativamente positivas, já que tenho a impressão de que as pessoas estão refletindo sobre responsabilidades nas escolhas - talvez eu seja um otimista) e certas certezas reforçadas, como educação é a base da melhoria do país, porém a maioria dos políticos por aí não tem interesse em educar seu povo para não perder voto. Informação é uma arma poderosa. 
Aproveitando a deixa, um bendito aparelho eletrônico, que ainda não domino bem, acaba de me informar que já é hora de me arrumar. Adeus, minha querida Carla Mesquita.

Tu tens planos de fazer uma visita?

Hamburgo, neste 16 de março de 2015



Texto: André Bonfim
Foto: http://img.galerie.chip.de/imgserver/communityimages/822000/822033/original_6D2556A3F2783BADF675023EDB9B37D9.jpg